Nas celebrações não haverá lava-pés, beijo da cruz ou outros rituais belos para o povo

Um papa Francisco rezando sozinho em uma praça de São Pedro vazia e sob chuva chocou o mundo, há poucos dia. A pandemia do novo coronavírus o fará rezar sozinho novamente, durante o tríduo que leva a maior das festas católicas: a Páscoa. Pela primeira vez, começando hoje, se verá uma Semana Santa sem o povo na Itália – e em diversos lugares pelo mundo como no Brasil e nas celebrações não haverá lava-pés, beijo da cruz ou outros rituais belos para o povo. E o papa, visivelmente abatido em suas últimas aparições, admite que vive hoje um momento de “incerteza”.

Mas não deixa de cobrar coerência. “Esta crise nos toca a todos: ricos e pobres. É um apelo à atenção contra a hipocrisia. Preocupa-me a hipocrisia de alguns políticos que dizem que querem enfrentar a crise, que falam da fome no mundo, enquanto fabricam armas. É o momento de nos convertermos desta hipocrisia em ação. Este é um tempo de coerência. Ou sejamos coerentes ou perdemos tudo.”

Em entrevista ao jornalista e vaticanista inglês, Austen Ivereig, que já escreveu uma biografia dele, o pontífice conta como vive a pandemia: “A Cúria – explicou Francisco – busca trabalhar em continuação, viver normalmente, organizando-se em turnos para que nunca tenha muitas pessoas juntas. Muito bem pensado. Mantemos as medidas estabelecidas pelas autoridades sanitárias. Aqui na Casa Santa Marta temos dois horários para o almoço, para atenuar o afluxo dos residentes. Cada um trabalha no seu escritório ou em casa com instrumentos digitais. Todos trabalham, ninguém fica no ócio.”

Em um segundo momento, admite o momento complexo em que vive uma Igreja sempre acostumada a lidar com a relação entre pastores e rebanhos e ainda não totalmente afeita à revolução digital. “Como eu vivo espiritualmente? Rezo mais ainda, porque acredito que devo fazer assim, e penso nas pessoas. Preocupa-me isso: as pessoas. Pensar nas pessoas me ajuda, me faz bem, me subtrai ao egoísmo.”

“A minha maior preocupação – ao menos a que sinto na oração – é como acompanhar o povo de Deus e estar mais próximo dele”, prossegue o líder da Igreja Católica. “Este é o significado da Missa das sete da manhã ao vivo em streaming, seguida por muitas pessoas que se sentem acompanhadas, assim como de algumas minhas intervenções e do rito de 27 de março na Praça São Pedro. Também de um trabalho bastante intenso de presença, por meio da Esmolaria Apostólica, para acompanhar as situações de fome e de doenças. Estou vivendo este momento com muita incerteza. É um momento de muita inventividade, de criatividade.”

Ele também se mostra presente e já pensa no futuro. “O povo de Deus precisa do pastor ao seu lado, que não se proteja demais. Hoje o povo de Deus precisa do pastor muito próximo de si, com a abnegação daqueles capuchinhos, que faziam assim. A criatividade do cristão deve se manifestar em abrir novos horizontes, abrir novas janelas, abrir transcendência para com Deus e os homens, e deve se redimensionar em casa. Não é fácil ficar fechado em casa Recordo-me de um verso da ‘Eneida’ que, no contexto de uma derrota, dá o conselho de não desistir. Preparem-se para tempos melhores, porque naquele momento isso nos ajudará a recordar as coisas que aconteceram agora. Cuidem-se bem para um futuro que virá. E quando este futuro chegar, fará muito bem recordar o que aconteceu agora.”

E como será a Igreja Católica pós-pandemia. “Algumas semanas atrás me telefonou um bispo italiano. Aflito, dizia-me que ia de um hospital a outro para dar a absolvição a todos os que estavam internados, ficando na entrada do hospital. Mas que alguns canonistas tinham chamado sua atenção dizendo que não podia fazer assim, a absolvição é permitida apenas com um contato direto. “Padre, o que o senhor pode me dizer?”, perguntou-me o bispo. Disse-lhe: “O senhor faça o seu dever sacerdotal”. E o bispo me respondeu: “Obrigado, entendi”. Depois soube que dava absolvições em vários lugares.”

Governos

O governante do Estado do Vaticano também não se furtou a falar do papel atual dos políticos. “Alguns governos – disse o Papa – tomaram medidas exemplares, com prioridades bem definidas, para defender a população. Mas estamos nos dando conta de que todas as nossas preocupações, queira ou não, estão ligadas à economia. Dir-se-ia que no mundo financeiro sacrificar seja uma coisa normal. Uma política da cultura do descarte. Do início ao fim. Penso, por exemplo, à seletividade pré-natal. Hoje é muito difícil encontrar pela rua pessoas com a síndrome de Down. Quando são detectados nos exames de ultrassom, são renegados. Uma cultura da eutanásia, legalizada ou oculta, na qual são dados remédios ao idoso até um certo ponto.”

Ele teme ainda a visão de alguns políticos europeus. “Hoje, na Europa, quando se começam a ouvir discursos populistas ou decisões políticas de tipo seletivo não é difícil recordar dos discursos de Hitler em 1933, mais ou menos os mesmos que alguns políticos fazem hoje.”

Em outro momento, critica as políticas sobretudo para os mais fragilizados. “Os sem-teto, continuam sem-teto. Alguns dias atrás vimos uma fotografia de Las Vegas, na qual eles tinham sido colocados em quarentena em um estacionamento aberto. E os hotéis estavam vazios. Mas um sem-teto não pode ir a um hotel. Aqui pode-se ver a prática da teoria do descarte.” (Com agências internacionais)

Fonte: Jornal de Brasília